REFLEXÕES TEATRAIS
Sobre o musical – As festas da Tia Ciata, seus processos e outras reflexões teatrais.
Reflexões sobre o musical As festas da Tia Ciata
Não
seria bom que os poetas e os escritores se exprimissem de vez em
quando sobre o seu material, suas criações, sobre prosa, poesia, fragmentos,
versos e frases? Creio que daí poderia surgir uma teoria respeitável, no âmbito
da qual o processo estético se apresentaria não apenas como fruto da criação,
mas também como fruto da reflexão sobre a criação. Além do mais, tal teoria
teria a vantagem de ser de origem ao mesmo tempo racional e
empírica. (O ensaio e sua prosa do
filósofo alemão Max Bense).
Sobre a pesquisa e o roteiro:
Quando
pensei em montar um espetáculo teatral que homenageasse o samba, pensei em uma
linguagem que o retratasse de forma despretensiosa, alegre, singela e popular.
Assim como é o samba.
Escolhi
esse tema, não apenas por ser uma carioca que ama o Rio e sua cultura, mas
fundamentalmente por ter passado anos da minha infância na Bahia e por ter uma
mãe baiana, cozinheira (Chef), que frequentemente promovia rodas de samba e
festas musicais em nossa casa. Assim, tal como acontecia na casa da Tia Ciata,
nas festas promovidas por minha mãe existia um forte vínculo entre gastronomia
e samba. Minha mãe, filha de um intelectual, herdou do pai a compulsão pela
leitura e pela escrita, chegando a publicar três romances. Mesmo morando no
Rio, sempre voltamos à Bahia. Com estas vivências, adquiri desde a infância um
conhecimento empírico e a paixão pela cultura afro-brasileira.
Antes
de escrever o roteiro do espetáculo As festas da Tia Ciata, busquei
primeiro aprofundar meus conhecimentos sobre a história dos Africanos na Bahia
e no Rio. Logo descobri a vasta obra de um dos mais importantes africanólogos
brasileiros – Alberto da Costa e Silva, diplomata, memorialista, historiador e
membro da ABL. Em contato com seus livros, uma fantástica coincidência muito me
emocionou. O historiador afirmava ter iniciado seus estudos sobre a África
motivado por um professor que muito admirava no Liceu: Herbert Parentes Fortes,
filólogo e escritor. Em um depoimento, Alberto reproduziu um trecho de um
diálogo com Herbert:
– Comece pela primeira linha – disse-me. Pois
o livro parte da terra para o homem e do homem para as suas desventuras. E
esqueça o que na obra se quer ciência. Fique com a poesia. Isto é, com a verdade
do instante. Ao contrário das intuições da poesia, que valem para sempre,
dizia-me Herbert Parentes Fortes, a ciência envelhece. Envelheceu em Euclides
da Cunha, como envelheceu e prejudicou Nina Rodrigues. Pois ambos seguiram as
doutrinas do racismo europeu.
A
coincidência que me deixou emocionada foi o fato de que Herbert
Fortes é meu avô materno. Foi ele quem indicou ao Alberto a leitura de dois
livros: Os africanos no Brasil, de Nina Rodrigues, e Costumes
africanos na Bahia, de Manuel Quirino. Fiquei tão apaixonada pela pesquisa
sobre a África e sobre os africanos que escrevi outro roteiro para jovens
(ainda inédito): Aqualtune a princesa do Kongo. Não demorei a entrar em
contato com o Alberto, que convidou a mim e a minha mãe para um chá na ABL.
Desfrutamos da companhia de muitos outros acadêmicos, e nessa tarde o tema
central não foi a África. Instigados pelo entusiasmo de Alberto, todos falaram
sobre o meu avô.
Mais tarde, pesquisando sobre o Samba, conheci a história da baiana Hilária Batista de Almeida – a famosa Tia Ciata, principalmente através de um livro do cineasta Roberto Moura, intitulado: Tia Ciata e a Pequena África no Rio de Janeiro.
Muito
me influenciou esse livro de Roberto Moura, porque estava tudo lá. Como amo fazer
pesquisas históricas, passei a ler livros sobre a música brasileira, sobre os
Ranchos, o Carnaval e sobre o Samba. Li Feitiço
decente: transformações do samba no Rio de Janeiro, 1917 – 1933, de Carlos
Sandroni, Doutor em Musicologia. Outros dois livros relevantes foram: Mandingas
da Mulata Velha na Cidade Nova e Enciclopédia Brasileira da Diáspora
Africana, ambos de Nei Lopes. Também me interessei pelas crônicas de jornalistas
carnavalescos da época de Ciata e por estudos de historiadores sobre o Rio de
Janeiro do início do século XX.
O período abordado no roteiro, inicia-se em 1916 (ano do nascimento do samba) e se encerra em 1924 (ano da morte de Tia Ciata). Minha intenção foi contar a história ainda oculta dessas mulheres afro-baianas, e não a que as relaciona com a escravidão (muitos já fizeram isso). Meu enredo revela as tias baianas como líderes e protagonistas de um momento marcante da história cultural do Rio de Janeiro e do país. Tia Ciata foi, acima de tudo, uma empreendedora cultural: ficou famosa pelas festas que promoveu na Praça Onze, pelos quitutes que vendia nas ruas da capital, pelo trabalho cooperativo de mulheres baianas e costureiras que criou e administrou, pela sua ascensão no Candomblé e na Pequena África, por sua influência e aproximação com os grandes compositores da sua época e, principalmente, por sua relação com os ranchos, o carnaval e o samba. Foi essa a pesquisa amplamente desenvolvida no roteiro, que é narrada nas três músicas criadas exclusivamente para o espetáculo, nas sete composições de época, nos diálogos e nos figurinos.
Nancy,
viúva de Bucy (neto da Tia Ciata) e Gracy (bisneta), saíram emocionadas do
espetáculo, afirmando que o roteiro não poderia ser melhor e mais fiel ao
universo de Tia Ciata. Declarações parecidas deram muitos outros sambistas e
artistas do Movimento Negro do Rio.
No início, pensei em colocar um dos cronistas da época como o Jota Efegê, Peru dos Pés Frios ( Mauro Almeida) ou o Vagalume, como o personagem narrador (o repórter das ruas). Depois eu optei por colocar um personagem que mesclava o papel de uma Griotte (contadora de histórias) com o de um Brincante (o artista popular). Não quis limitar meu roteiro a uma época determinada. Utilizando uma linguagem metateatral, coloquei em cena uma diretora de teatro, que assumiu a personagem da contadora de histórias, transitando entre o passado e o presente, como se pôde ver uma cena sobre a escravidão e na cena sobre a música Carinhoso em que a diretora e a cantora convidam o público a cantar. Sobre o Brincante, Fraga Ferri assim o descreve:
O
artista brincante é aquele que destila causos, cantos, danças e mitos dos
quatro cantos do Brasil, que dependem fundamentalmente de vivência, contato
físico e da transmissão oral, que é o modo próprio com que os humanos criam
seus signos e modos de vida, que vão se relacionar e identificar uma cultura ou
seu modo próprio de se constituir numa coletividade... O imaginário se funde
com o real, ao ser estabelecido uma cumplicidade durante o “brincar” cênico.
Inspirada
por essa descrição, criei um personagem que lança mão da oralidade, da contação
de histórias, da dança e dos gestos. Luiz da Câmara Cascudo, historiador e
antropólogo brasileiro, em seu livro A história dos nossos gestos, fala
sobre a importância dos nossos códigos corporais não verbais:
O Gesto
é anterior à Palavra. Dedos e braços falaram milênios antes da Voz... A Mímica não
é complementar, mas uma provocação ao exercício da oralidade. Sem gestos, a
Palavra é precária e pobre para o entendimento temático.
Sobre o espetáculo:
Enfrentamos
um período de crise no país, no qual a ausência de patrocínios passa a ser a
regra e não a exceção. Sem patrocínio e com ingressos a preços populares,
lembrei-me de Jerzy Grotowski:
O
fundamental no teatro é o trabalho com a plateia, não os cenários e os
figurinos, iluminação, etc. Estas são apenas armadilhas, e, se elas podem
ajudar a experiência teatral, são desnecessárias ao significado central que o
teatro pode gerar.
Para a
ambientação cenográfica, se trama central do espetáculo eram as festas da Tia
Ciata cheia de sambistas, por que não criar uma roda de samba? Na encenação,
tudo acontece a partir dessa roda de samba fisicamente materializada pelos
atores e atrizes – e para ela retorna. Quanto aos figurinos, como eu já havia
criado figurinos que foram elogiados pela crítica, a pesquisa estava pronta, apenas
repeti a dose.
Ao ver a euforia com que o público
recebeu esse espetáculo, tive a convicção de que Grotowski estava totalmente certo:
não podemos estagnar a nossa arte em função de velhos paradigmas, não devemos
ceder em momentos de crise nem quando faltam políticas culturais mais
abrangentes. Sigamos em frente!
Quando
levamos o espetáculo do Teatro Glauce Rocha para a Sala Baden Powell perdemos volume
de espaço cênico. A Sala Baden foi projetada para acolher shows musicais, e por
isso tivemos que adequar nosso trabalho a um espaço menor. Todo meu empenho
como diretora foi focado na interpretação dos atores.
Sobre a
crítica:
Defendo a necessidade de bons críticos de teatro para a mediação com o público leigo e para o registro reflexivo da nossa história teatral. Conheço alguns críticos que muito admiro. Destaco, no passado, Yan Michalski, que, mais do que um crítico, foi um grande apaixonado pelo teatro. Ele conhecia profundamente o universo sobre o qual escrevia. Às vezes assistia duas ou três vezes o mesmo espetáculo, antes de fazer uma crítica. Gostava, também, de escrever mais de uma crítica sobre o mesmo espetáculo, pois não comentava apenas um espetáculo em si, mas o inseria no contexto histórico e no panorama da época, além de mostrar sua importância na trajetória dos artistas envolvidos, que, quando não os conhecia, fazia questão de conhecê-los para captar seus depoimentos. Em seus texto, Yan dava conta, ainda, dos rumos do teatro brasileiro como atividade artística e profissional.
Ao
iniciar a minha carreira, eu o procurei e ele me recebeu com um sorriso largo e
curioso. Logo começou a me fazer perguntas, a respeito de minhas experiências e
sobre os cursos que eu havia frequentado no exterior. Yan buscava conhecer
todos os grupos profissionais de teatro e também os novos talentos,
acompanhando as suas trajetórias. Hoje, em alguns críticos, sinto até um certo
desprazer pelo ofício e uma indiferença ou desprezo leviano pelo que não
conhecem. Hoje somos nós, os artistas, que já no fim de nossas temporadas temos
que insistir em convidá-los.
Sobre o passado:
Lembro-me
com saudades do meu primeiro trabalho como produtora em 1985, com o espetáculo Bailei
na curva, que mesmo encenado por um grupo de jovens atores e atrizes cariocas,
recém formados pela Escola de Teatro Martins Penna (turma do diretor José
Wilker), venceu o edital do Glauce Rocha. Tivemos a presença de toda a crítica
do Rio de Janeiro, quando não na estreia, ainda no período das primeiras
apresentações. Iniciamos com o nome de Grupo Depois do Baile, que permanece até
hoje como nome fantasia da atual Cia. Fanfarra Carioca.
Com uma
verba mínima também, o cenário de Bailei na curva, assinado por José
Dias, restringia-se somente a oito carteiras escolares instaladas em cena – e mais
nada, seguindo a fórmula do “teatro pobre” de Grotowski. Os figurinos foram
comprados em brechós. Em síntese, uma produção realizada com parcos recursos. Mas
foi nesse formato, com uma temporada de dois meses, de quarta-feira a Domingo, o
espetáculo de um grupo desconhecido e iniciante recebeu logo na primeira
semana, várias críticas positivas. Conquistou quase todos os prêmios da época,
como o Prêmio INACEN de Melhor Espetáculo do Ano, além de ter participado do IX
FITEI, no Porto/Portugal.
Na crítica que recebemos do Macksen Luiz (postada abaixo) ele iniciou dizendo: O que mais me atrai em Bailei na curva, é a absoluta ausência de pretensão.
Será
que os valores daquela época mudaram? O espetáculo As festas da Tia
Ciata, assim como o premiado Bailei na Curva, é também um
espetáculo despretensioso.
Conclusão:
Temos que buscar por temporadas dinâmicas, porém mais longas (com duração de dois a três meses). Lamento pela existência de velhos paradigmas que restringem o mercado teatral. Temos que buscar diversidade criativa – e promover mais inclusão do que exclusão.
Segue abaixo algumas fotos e críticas do meu baú de memórias e do histórico da Fanfarra Carioca (Nome fantasia Depois do Baile).
Parabéns um baú de belas e variadas experiências, com premiações e muito sucesso ao longo da sua trajetória! Mas, o que mais chama atenção é a dedicação de uma vida inteira ao palco, ao teatro, à arte e cultura! Jussara Nunes
ResponderExcluirMuito obrigada.
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